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“Primavera em Maresfield Gardens”*

Luiza Moura

 

                                        … para o meu melhor amigo.

 

 

 

Primavera de 1939, Freud está completando 83 anos. Há quase um ano partiu de Viena e se estabeleceu em Londres, agora, no seu último endereço: Maresfield Gardens, número 20. Preparando-se para ‘morrer em liberdade’, Freud está, ao mesmo tempo, aprisionado em um corpo frágil e livre para publicar o seu inquietante ‘Moisés e o Monoteísmo’. Em torno deste grande homem do século XX, escritores, artistas e pensadores circulam. Todos os encontros são reais, ainda que tenham ocorrido em diferentes momentos e endereços. Apenas o encontro com Dr. Winnicott nunca aconteceu, mas, agora, vai acontecer…

 

 

 

Roteiro baseado em uma idéia de José Outeiral e Ana Leão.

 

Personagens: Sigmund Freud, Donald Winnicott, Leonard e Virgínia Woolf, Salvador Dalí, Lucian Freud e Lün (cadela chow-chow, latidos em off)

 

Sinopse: Cenário 1: Palco escuro, telão, no alto e ao fundo, onde se projetam fotos da família, amigos e colegas, em ordem cronológica, até chegar na filmagem do aniversário de Freud de 83 anos, feita pela princesa Eugénie. Cena final: a neta de Freud levanta de seu colo e sai.

 

Palco se ilumina

 

Cenário 2: Jardim da casa dos Freud em Londres, Maresfield Gardens, numero 20. Cadeiras de vime dispostas entre plantas. Freud sentado, inerte, como uma continuidade da cena do telão.

 

Depois de um breve silêncio, o som da festa (em off) começa, gradualmente, a invadir o palco.

Ao mesmo tempo, Freud fala com alguém, que ainda está fora de cena. Freud está olhando para a platéia, criando uma dubiedade sobre com quem ele fala, afinal.

 

Freud: Eu disse para minha filha, Anna, disse para Martha, disse para a nossa Princesa Marie Bonaparte, que é a mentora por trás de tudo o que acontece comigo nos últimos tempos, EU NÃO QUERO MAIS FESTAS DE ANIVERSÁRIO.

Não me entenda mal… Perdoe-me se me porto como um velho teimoso e mal criado, me alegra estar em Londres, com todos vocês, mas meu coração, ao completar 83 anos, está por demais fatigado…

 

(diminui o som da festa em off até desaparecer)

 

Winnicott: (entrando em cena) Professor, compreendo seu cansaço, compreendo também como é ter a vida regida por mulheres. (com humor sutil) Vivi isto intensamente, por muito tempo.

Elas nos inspiram, nos acalentam, nos protegem. Por outro lado, causam tremores de terra de magnitudes variadas, às vezes, quase imperceptíveis e persistentes, às vezes, de grandes proporções. O certo é que as mulheres sempre nos ameaçam com suas presenças… capazes de invadir o mais íntimo dos pensamentos.

 

Freud: Dr. Winnicott, você é um sábio, sábio demais para sua idade, talvez sábio demais para ser um psicanalista…

 

Winnicott: (com um leve sorriso) Sábio? Talvez eu saiba demais de minhas crianças que sofrem e de suas mães que se equivocam e se angustiam, mas não sei muito além das paredes de meu consultório.

 

Freud: Pois lhe garanto, amigo, pouco há mais para se saber, pouco há…

 

Winnicott : (tirando os olhos de Freud, olhando para frente, pensa nas palavras de Freud e retoma o assunto do aniversário):

Pois ainda que o senhor deva sentir muito prazer em poder estar só consigo mesmo e se deixar levar por seus pensamentos, acredito que este aniversário em liberdade mereça ser comemorado.

 

Freud: Não encontrei desculpas suficientes neste ano para que não houvesse comemorações… Como sabe, no meu aniversário passado, foi fácil convencer a todos que não havia muito o que comemorar. Estávamos todos assustados – no meu caso mais contrariado do que temeroso – e envolvidos com o problema da emigração.

E eu, a bem da verdade, não quis nem mesmo responder às mensagens e telegramas que chegaram pelos meus 82 anos.

Tudo foi muito irreal, naqueles dias…

A família se dispersando, não estávamos mais lá e ainda não estávamos aqui. Todo este processo foi arrasador. Senti-me humilhado ao ir embora de Viena, como um capitão que abandona seu posto. – Jones foi gentil tentando me convencer de que o navio já me abandonara!-

Aos 82 anos, vi meus filhos, meus colegas e amigos partirem do país que foi meu lar desde minha primeira infância, eu mesmo parti com a certeza de que nunca mais voltaria, e esta certeza me corrói. Algumas certezas sobre os lugares que não voltaremos ou as pessoas que nunca mais veremos, terminam por nos matar antes da hora.

 

Winnicott: Concordo com o Dr. Jones, e sou grato a ele por ter feito tanto para garantir a sua vinda e da sua família em segurança. O seu país já não era mais o seu país. O senhor próprio, em sua individualidade, representa melhor a Áustria que, neste momento, não representa mais a si própria, vemos um país inteiro se evaporar aos nossos olhos. O senhor, a salvo aqui em Londres é uma das formas de resistir à tirania de Hitler.

 

Freud: Pois que sejamos gratos a Jones, mas também à nossa Princesa Marie Bonaparte… uma mulher que reúne um numero incrível de atributos. Supera em muito a Srta. Lou Andreas-Salomé, a supera em virilidade, espontaneidade e estilo. Srta. Salomé é apenas um reflexo em um espelho. A Princesa é um “demônio de energia” e ainda absolutamente generosa!

A propósito da tirania que se instala na Europa, gosto de ouvir suas palavras, Dr. Winnicott. Para mim e para toda a humanidade, tenho certeza, é de grande importância que os gentios se manifestem contra a barbárie nazista. A voz de vocês tem uma força inestimável uma vez que não soa como que defendendo seus próprios interesses. Aliás, sei de suas tentativas de argumentação através de Lady Chamberlain…

 

Winnicott: Sim, escrevi para Lady Chamberlain, buscando uma intermediação para que minhas palavras cheguem ao Primeiro Ministro. Preocupa-me que nossos líderes compartilhem secretamente da insanidade anti-semita dos alemães, contra isto precisamos ficar em alerta.

Mas afora estas preocupações com um primeiro ministro um tanto equivocado, como o senhor e sua família estão sentindo o acolhimento londrino?

 

Freud: (sorrindo) Pois, aos 83 anos, descobri que posso ser popular. O gerente do banco me diz: “Conheço tudo sobre o senhor”.

O motorista de táxi, que conduz a Anna, observa: “Ah, aqui é a casa do Dr. Freud”. Para ser sincero, no início, ficamos perturbados com tudo isto, quase sufocamos de tantas flores! Os amigos e os estranhos nos receberam de maneira calorosa.

Com 19 anos, quando conheci Londres, imediatamente, me tornei um anglófilo.

Como uma estranha premonição, estudei inglês toda minha vida… Chegou a hora de voltar para morrer em liberdade, confio que estou no lugar certo!

Por outro lado, não me iludo, sei que, na Inglaterra, serei sempre um estrangeiro… Martha ainda se sente uma senhora do interior chegando pela primeira vez na cidade grande, tudo lhe parece de um tamanho e de uma grandiosidade inimagináveis.

A Sra. Woolf com sua acidez poética disse: “todos os refugiados são como gaivotas com os bicos abertos à espera de migalhas”.

 

Winnicott: Me parece, que a autora desta desconcertante frase acaba de chegar! O casal símbolo da vida cultural e cosmopolita de Londres está se dirigindo para estar conosco… Sr. Leonard e sua encantadora Virgínia Woolf…

 

Freud: Encantadora e poderosa, ao dispor como ninguém de sua assustadora fragilidade. Creia, Dr. Winnicott, a miséria da velhice me coloca em certa desvantagem num confronto com as idéias da Sra. Woolf… mas, de qualquer modo, me agrada sua presença…

 

(Virgínia e Leonard Woolf entram em cena)

 

Virgínia: Parabéns, professor, pelo seu aniversário, me alegra encontrá-lo tão bem.

 

Freud: É um prazer poder estar com vocês. Meus amigos e meus editores que eu tenho na mais alta conta. Mas quanto a eu estar bem… ora, Sra., preciso ser sincero, sinto a velhice como algo constrangedor, e meu estado de saúde me transportou para uma ilha de dor flutuando em um oceano de indiferença.

Mas é verdade que algo tem me dado um novo ânimo, e isto eu divido com vocês: a finalização e a publicação do meu texto “Moisés e o monoteísmo”, que, em inglês, terá a Hogarth Press como editora! Esta realização me ajuda a passar por estes dias e suportar este corpo debilitado.

 

Leonard: Aliás, talvez não seja a oportunidade mais adequada, mas eu e Virgínia gostaríamos de encaminhar com o Prof. uma questão, um detalhe, sobre o título de seu livro “Moisés…”: acredito que a expressão “monoteísmo” pode gerar uma certa inibição nos leitores… dando margem a preconceitos tanto por parte dos leitores familiarizados com a psicanálise, como dos leitores leigos… Afora, há um considerável risco de despertarmos intervenções inoportunas de religiosos fanáticos…

 

Freud: Pois saiba, Sr. Leonard, a presença da expressão “monoteísmo” no título é inegociável! “Moisés e o Monoteísmo” foi escrito e será publicado como um desafio, um desafio aos leigos, letrados e religiosos, cristãos e judeus. Que todos fiquem à vontade para expressar suas angústias e desconfortos.

“Moisés e o Monoteísmo” nasceu para instigar o espírito dos leitores e criar desassossego.

Fazia-me falta voltar a correr riscos, alegra-me deixar de ser FAMOSO para voltar a ser INFAME!

 

Virgínia: Pois está resolvido, então. A voz do autor é sempre a mais alta.

 

Leonard: (buscando um tom mais descontraído) Falando sobre ser famoso e infame eu soube de uma história curiosa envolvendo sua obra:

Conta-se que um homem foi preso roubando livros na Foyle’s, incluindo um livro do senhor. O magistrado, encarregado do julgamento, condenou o homem a ler as obras completas de Sigmund Freud. Eu como editor de todos seus livros em inglês, confesso que não achei de todo ruim esta nova moda para disciplinar transgressores!

 

(todos riem)

 

Freud: Sra. Woolf, não sei se Anna e Martin já lhe falaram sobre um favor que querem pedir, meus filhos estão muito interessados em ter sua opinião sobre seus escritos que pretendem transformar em livros.

 

Virgínia: Claro, estou à disposição.

(se encoraja e segue falando)

Mas secretamente espero ver no texto da senhorita Anna alguma opção à sua proposta de entendimento do mundo um tanto centrada nos homens e nos adultos, Prof..

Ou seja, espero por uma alternativa que desestabilize os interesses daqueles que detém o poder e a palavra.

 

Freud: Minha cara senhora, é de conhecimento de todos, sua antipatia para com minha descoberta da disposição Edípica… mas não creio que algum psicanalista ou mesmo minha querida Antígona tenham encontrado outra forma de nortear o entendimento da psicologia humana e da civilização.

Talvez, algum dia, a psicanálise e a neurologia poderão se desenvolver neste sentido, mas ainda não vislumbro qualquer sinal de tais desenvolvimentos.

 

Virginia: Desculpe-me se não me porto bem, mas este tema realmente me altera! Não tenho dúvida que sua teoria tem enorme valor, pensar o inconsciente, se aprofundar nos sofrimentos e desejos humanos é uma aventura desmedida e maravilhosa.

Mas também não tenho dúvida de que sua teoria acerca do Complexo Edípico favorece a absolvição de adultos abusadores. Temo o mal entendido que pode ser causado a partir da proposta de que responsabilidades sexuais, fantasiadas ou realizadas, sejam repassadas à criança!

Pelo que sei de Anna, não perco a esperança de encontrar originalidade e coragem em seu novo livro!

 

Freud: Sem dúvida sobre originalidade e coragem a Sra. conhece muito!

Mas e o nosso ilustre amigo Dr. Winnicott, o que pensa destas arrebatadoras palavras da Sra. Woolf?

 

Winnicott: Professor Freud, ouvindo a Sra. Woolf, me vem à cabeça uma das muitas lições que recebi do Sr.: “nós psicanalistas temos muito a aprender com os poetas e escritores criativos, pois eles tem acesso a territórios ainda obscuros para a ciência”.

 

Freud: (sorrindo) Sr. Winnicott, o Sr. tem um maravilhoso dom de nunca se furtar de um posicionamento veemente, mas, ao mesmo tempo, fazer isto da forma mais sutil que eu conheço. Por exemplo, agora mesmo, o Sr. concorda com minhas palavras e, ao concordar, concorda com a Sra. Woolf!

Veemência e sutileza… és um homem muito complexo, Sr. Winnicott, ainda que pareças um homem muito simples!

Diante destes interlocutores admiráveis, e diante da citação de minhas próprias palavras, nada mais posso fazer além de me calar e… (pausa) lhe oferecer uma flor de meu próprio jardim inglês, Sra. Woolf.

 

(Freud arranca uma flor de seu próprio jardim)

 

Virgínia: Oh! Um belo Narciso. (breve silêncio, com certo constrangimento):

Leonard e eu pedimos licença aos senhores, vamos ao encontro da Srta. Anna.

 

Leonard: Com licença.

 

Freud: Por favor, fiquem a vontade.

(dirigindo-se a Winnicott e procurando a sua chow-chow com o olhar):

O Sr. viu Lün? Minha Chow-chow?

Sinto que ela tem evitado a proximidade comigo, sinto que já começaram as despedidas…

Como já deve ser de seu conhecimento, não há dúvida de que tenho uma reincidência do meu velho câncer, que hoje se aproxima demais de meu cérebro, o que dificulta qualquer intervenção. Ele compartilha a minha existência há 16 anos. Naqueles tempos, naturalmente, ninguém poderia prever qual de nós mostraria ser mais forte.

Temo que, para minha cadela Lün, esteja claro que o triunfo não foi de seu velho amigo.

Veja, lá está Lün! É uma beleza de cadela. Sinto um certo inebriamento quando brinco com ela, é como se eu me afastasse de tudo o que há de hipócrita nos contatos civilizados. Estar com Lün, me coloca à margem da dor.

Lün!!! (chama com certo desespero)

Chamo por Lün e veja quem se aproxima!

Nosso intrigante pintor do avesso… lá vem ele chegando com seu inconsciente despudoradamente à mostra!

 

(Freud e Winnicott sorrindo observam a chegada de Salvador Dalí)

 

Freud: Como vai senhor Dalí? Este é meu colega Dr. Donald Winnicott.

 

Winnicott: Muito prazer.

 

Freud: E sua adorável esposa Gala, não pode lhe acompanhar?

 

Dalí: Minha amada Gradiva lamentou muito não poder estar com o Sr. nesta data, mas ela teve compromissos em Paris. Minha empolgação vale por dois ou mais, muito mais. Acho que eu, toda a minha felicidade e mais a minha Gradiva talvez excedesse o numero de pessoas que sua linda festa comporta.

 

Winnicott: Me desculpe a intromissão, mas não posso deixar de comentar a forma surpreendente como o Sr. se refere a sua esposa Sra. Gala: Gradiva… me parece uma ótima maneira de se fazer um elogio.

 

Dalí: É uma maneira de em só tempo revelar como que, ambos, o Professor Freud e Gala me inspiram!!! E, por que não dizer: me salvam!

(dirigindo-se a Freud): Professor, estou ansioso para saber o que pensa da minha pintura “Metamorfose de Narciso”, sei que o Sr. Edward James trouxe para sua apreciação.

 

Freud: Pois sim, diferente das pinturas clássicas, onde procuro o INCONSCIENTE, confesso que suas obras me colocam numa estranha posição… tudo está tão exposto que, preciso ser honesto, fico um tanto entediado…

 

Dalí: (pensativo e desconcertado)

Suas palavras, aparentemente vagas, inquietam-me… Suas palavras são uma sentença, Prof. Freud:

(com tom de voz alterado):

Antevejo a morte do surrealismo!!!

(silêncio, e Dalí se refaz):

Mas enquanto o surrealismo e eu permanecemos vivos, compartilho com vocês um episódio incrível que eu vivi, hoje, no caminho até Maresfield Gardens.

Antes de contar o acontecido de agora a pouco,

(voltando-se para Winnicott) preciso atualizar o Dr. Winnicott sobre um fato anterior, já do conhecimento do Professor, que, reunido com o novo fato, faz tudo ter um sentido maior!

Enfim: Dr. Winnicott, há cerca de meio ano, estava eu em Paris, num café, com um grupo de amigos, todos discutindo fervorosamente o livro da Princesa Bonaparte sobre Edgar Allan Poe. De repente, quando eu vejo, na primeira página do jornal, a fotografia de ninguém menos que o Dr. Freud! Juntamente com a notícia de que estava se mudando de Viena, e indo se estabelecer em Londres e que, naqueles dias, se encontrava em Paris. Hospedado, justamente, na casa da Princesa!

Nós ainda não tínhamos nos refeito da notícia quando, dei um grito!!! Olhando sua fotografia acabava de descobrir o segredo morfológico de Freud: o crânio do Prof. é um escargot! Seu cérebro tem a forma de uma espiral para ser sugado com uma agulha! Este fato incrível, acontecido em Paris, no ano passado, o Professor já conhecia…

(voltrando-se a Freud, novamente)

O que o Prof. Não sabe é que, hoje, na minha vinda para cá, vi uma bicicleta encostada em um muro e, no selim, presa por uma cordinha, havia uma garrafa de borracha vermelha, de água quente, que parecia cheia d’água; e atrás da garrafa havia um caracol! Um caracol! Não é fascinante! Todo o universo se organizando, frente aos meus olhos, num redemoinho desvairado, onde o cérebro do Prof. Freud e um escargot ocupam o centro de tudo!

 

Winnicott: (com certo humor) Depois de lhe ouvir, com tanto vigor passional, fico certo de que o surrealismo seguirá com ótima saúde por mais um bom tempo…

 

Freud: Fascinante, fascinante mesmo é o seu gosto por compartilhar seu inconsciente e seu mundo onírico. Queria eu poder ter tempo e disposição para mergulhar nas profundezas da sua CONSCIÊNCIA, Sr. Dalí!

(Freud e Winnicott sorriem com certa cumplicidade)

 

Dalí: (desconsiderando o desprezo de Freud e dirigindo-se à Winnicott) Sabe, Dr. Winnicott, não é segredo para ninguém que eu pleiteio a posição de primeiro discípulo visual do Professor… Mas, além disto, minha autoconfiança exagerada me leva também para o mundo das letras. Estou, agora, escrevendo um livro sobre a paranóia, é realmente uma obra inspirada! Acredito que ainda poderei contribuir muito para a ciência de vocês!

 

(Freud olhando fixamente e, ao mesmo tempo, com indiferença para Dalí, volta-se para Winnicott e diz:)

 

Freud: Nunca vi um exemplo mais completo de espanhol! Que fanático!!!

 

Dalí: Se os Srs. me permitem vou cumprimentar a Princesa Bonaparte e aproveitar para discutir o livro sobre Allan Poe direto na fonte! Não posso perder esta maravilhosa oportunidade.

 

Freud: Por favor… (Freud fazendo um gesto com o braço como quem mostra o caminho para Dalí).

(Dirigindo-se a Winnicott) Por Deus! Este pintor me deixa atordoado!

(a chegada do jovem Lucian Freud interrompe Freud, que passa às apresentações)

Sr. Winnicott, conhece meu neto Lucian, filho de Ernst? Ernst… o mais sortudo de meus filhos! Casado com a melhor das noras, Lux! Pai de filhos inspirados e inspiradores…

Ernst é um homem com grandeza de espírito e um arquiteto competente, mas como nem sempre estes valores são reconhecidos, torço para que ele siga tendo muita SORTE!

Lucian… este é Dr. Donald Winnicott, meu colega e amigo.

 

Winnicott: Muito prazer. Sei que és um jovem de extraordinário talento.

 

Lucian: O prazer é meu, fico muito feliz de ouvir isto do Sr…

 

Freud: No ano passado, Lucian foi admitido na Escola Central de Artes e Desenhos. Este jovem tem percorrido o mundo da escultura, do desenho e da pintura, e, claro, a Princesa Bonaparte já é uma de suas fãs!

 

Winnicott: Imagino que posso estar na frente de um dos grandes artistas das próximas décadas. Quem sabe… Lucian será um dos nomes da pintura na passagem do milênio…

 

Freud: Quem sabe, um dia, retratará, o próprio George VI ou o próximo Rei…

 

Winnicott: Ou, como tudo leva a crer, a nossa próxima Rainha.

 

Lucian: Bom, é com muito constrangimento, que relembro meu avô que o meu feito mais significativo, por enquanto, foi provocar acidentalmente um incêndio que destruiu minha Escola!

 

Freud: (dirigindo-se a Winnicott, com certo humor) Lucian, certamente, já se mostra uma artista inflamável! Mas pode estar certo que sua criatividade e suas idéias vão além deste incêndio.

(dirigindo-se a Lucian): Lembra de nossa conversa sobre como você percebe a arte, ou a “sua arte”?

(dirigindo-se a Winnicott, com veemência): Ouça, Dr. Winnicott, é algo que me parece ter muita relação com a psicanálise, ou com a “sua psicanálise”?

 

Lucian: Sim (com certo constrangimento frente a Winnicott), me lembro, claro. Falamos sobre um pensamento meu, mas que sinto estar pulsando no pequeno mundo de Bloomsbury: “a arte deste século começa a reivindicar ser a coisa em si e não a representação de alguma coisa”.

 

Freud: Veja, Dr. Winnicott, que observação inquietante! E que encaminhamentos pode ter tal sentimento e tal reivindicação dentro da nossa ciência!?…

(num tom bem humorado:) Temo, inclusive, nem ter alcance para tanto…

 

Winnicott: Inegavelmente, a comemoração dos seus 83 anos, em Maresfield Gardens, está deliciosamente desconcertante: Sra. Woolf com suas questões acerca do Complexo de Édipo, Sr. Dalí com seu inconsciente exposto, e seu neto com esta observação incrível sobre o tema da representação na arte, que, sem dúvida, nos reporta às questões da representação psíquica! Tudo isto num ambiente envolto pela expectativa das repercussões da versão inglesa de “Moisés e o Monoteísmo”.

 

Freud: (silenciosamente, concorda com Winnicott, mas logo volta-se para Lucian com certo desespero contido): Lucian, você viu Lün? Por favor, procure ela e traga-a para mim!

 

Lucian: (se retirando de cena) Sim… claro, com licença.

 

Freud: (recompondo-se e se dirigindo a Winnicott) Sim… meu “Moisés”… que me atormentou como um fantasma insepulto, mas, atualmente, tem sido motivo para grande diversão!

O Sr. soube da visita que recebi do Sr. Abraham Yahuda? “Um judeu bastante zeloso”… Pois ele me visitou para dissuadir-me de publicar o “Moisés e o Monoteísmo” em inglês, referiu que meu texto parecia ter sido escrito por um fanático cristão… ao mesmo tempo, um certo Padre McNabb questionou por quanto tempo a Inglaterra acolheria um autor de uma obra escandalosamente incestuosa… e, para completar, um escritor palestino me chamou de ignorante presunçoso…

Um judeu, um cristão católico e um palestino: Manifestações que só confirmam que estou no caminho certo!

 

Winnicott: (concorda sorrindo e reflete um pouco antes de falar) Foi realmente maravilhoso ter lhe acompanhado nesta tarde de primavera. Quando cheguei, lhe ouvi lamentando seu coração fatigado, e agora, posso ver seu vigor e seu tom desafiador ao falar de seu novo projeto.

És um homem incrível, Prof. Freud, talvez o mais incrível que eu tenha a oportunidade de conhecer em toda a minha vida.

Arrisco em dizer que “Moisés” tem algo encantadoramente autobiográfico…

 

Freud: Pois, autobiográfico, posso lhe afirmar que não… mas certamente ele surge em concordância com este momento em que me sinto fazendo uma passagem da vida para a morte, um momento contagiado pela irreverência que só a juventude ou a velhice extrema são capazes de nos brindar.

Quando tantos outros, na iminência da morte, abrigam-se na ilusão da religião – em busca da vida eterna e do Pai primordial -, eu, publicamente, desmistifico, mais uma vez e mais indiscretamente do que nunca, a origem das religiões.

Aquele que lê meu “Moisés” percebe que reconheço a coragem monoteísta, mas, acima de tudo, meu texto se dedica aos que dão um passo à frente e matam seu Deus único, sobrevivem a isto e, por fim, podem morrer em paz.

 

Winnicott: Morrer em paz… talvez, seja mais do que morrer em paz, talvez a questão seja estar VIVO na hora de morrer, o que para alguns privilegiados, como o Sr., torna-se perfeitamente possível.

 

Freud: Não estou certo disto, não vejo em mim nem muita paz, muito menos vivacidade.

Embora eu tenha sido incomunmente feliz na minha casa, com minha mulher e filhos, e, principalmente, com minha filha Anna – que correspondeu em uma medida rara a todas as expectativas de um pai – não consigo me conciliar com a miséria e a impotência da velhice e AGUARDO A TRANSIÇÃO PARA O NÃO SER com uma espécie de ansiedade.

 

Winnicott: O “não-ser”, apenas um homem muito vivo poderia escolher estas palavras para se referir à morte…

 

(Winnicott, serenamente, olha o jardim que floresce em torno deles)

Estou encantado com a linda forma que a primavera tomou em seu jardim inglês, Prof. Sigmund Freud.

 

Freud: Sim, uma primavera, sem dúvida, única.

 

(latido de Lün em off se tornando mais alto,

Freud, sorrindo, se abaixa para recebê-la em seus braços, antes dela chegar, escurece totalemente o palco:)

 

Freud (em off): Veja, Dr. Winnicott, aqui está ela! Lün!

 

(retorna o som da festa em off, música e vozes de crianças)

 

 

FIM

 

 

 

 

* Texto interpretado no VII Encontro Brasileiro sobre o Pensamento de D. W. Winnicott, Fortaleza, outubro de 2012.

Elenco: José Outeiral, Sigmund Freud; Cleon Cerezer, D. W. Winnicott; José Guedes, Leonard Woolf; Luiza Moura, Virgínia Woolf; Ana Leão, Salvador Dalí e Jairo Treiguer, Lucian Freud.

Direção: Ana Leão.

Queridos amigos e colegas,

Ainda sob o forte impacto da morte de meu pai, e na condição de colega e filha desse grande homem que foi David Epelbaum Zimerman, escrevi um breve texto em sua homenagem, que envio em anexo. Tracei um pouco da sua trajetória, e, principalmente, tentei descrever meu pai como ele era na intimidade. Percebi, mais do que nunca, nos últimos dias, que a admiração, carinho e gratidão que nutro por ele não são exclusividade minha e de minha família, e, assim, nada mais justo do que retribuir de forma igualmente pessoal, e compartilhar alguns detalhes da sua história. As manifestações de pesar têm sido inúmeras, intensas, e muito tocantes. Quero dizer a todos que se sentem pesarosos pela perda, e aos mais chegados, que se sentem condoídos nesse momento, que meu pai foi a pessoa mais coerente e genuína que já conheci. Os testemunhos que tenho recebido, dando conta do quão capaz ele foi de ajudar, inspirar, ensinar, respeitar, tranqüilizar a tantos, soam-me como justos e verdadeiros, pois refletem o que ele era em família, e trazem um grande alento. Obrigada pelo carinho e acolhida nesse momento tão difícil.

O Silêncio do Outeiral de José Guedes

“Há um grande silêncio

que está sempre à escuta…”

(Mario Quintana)

 

José Ottoni Outeiral abraçou sua finitude e partiu. Completou seu ciclo. Esgotou seu tempo. E o tempo não é contra nem a favor. Ele, o tempo, apenas dimensiona o possível. Em nós, a saudade inspirada na poesia de Chico Buarque: “a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais.”

Na valise da transcendência, em sintonia com seu otimismo, Outeiral levou a convicção do dever cumprido, e a esperança de que sua dedicação não tenha sido em vão.

Deixou-nos o necessário para prosseguirmos os rabiscos na construção do mosaico policromado, que nunca será definitivo.

Deixou-nos a régua e o compasso, que nos ajudam a projetar elipses, parábolas, hipérboles e outras sinuosas geometrias, soltas no espaço, como uma ponte nos convidando para passar.

No oceano de sua existência, José Outeiral escolheu ser a vela que acolhia calmarias e tempestades. Quando sopravam os ventos dos desencontros e descaminhos, a vela que nunca se omite, se necessário, apontava a turbulência como saída. “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente, é coragem …” (Guimarães Rosa)

E assim compartilhamos e assimilamos a arte de sobreviver, até sermos outorgados a viver criativamente.

No seu arrasto, do Oiapoque ao Chuí, o bom gaúcho Zé, como sinuelo, foi nos agrupando, formando um coletivo, cultivando a força da união na diversidade e na horizontalidade.

Hoje, sem carecer de cincerro, aprendemos com o seu legado, que só é nosso aquilo que é de todos. Sem exclusividade.

Na escuta de seu silêncio, Outeiral espera que sigamos em frente, singrando novas e renovadas possibilidades.

E que venha o amanhã!